Ordenação e tradição humana
>> sexta-feira, 30 de novembro de 2012
"Por
essa razão, torno a lembrar-lhe que mantenha viva a chama do dom de Deus
que está em você mediante a imposição das minhas mãos." (2 Timóteo 1.6)
Timóteo
recebeu “o dom de Deus” quando Paulo impôs suas mãos sobre ele. Isso
refere-se ao mesmo incidente mencionado em 1 Timóteo 4.14, onde é dito
que um corpo de presbíteros impôs as mãos sobre Timóteo (em cujo caso
Paulo teria sido um dos presbíteros), ou a um evento separado no qual
apenas Paulo impôs as mãos sobre ele. Não existe nenhuma evidência
bíblica para sugerir que a imposição de mãos, mesmo quando dons
espirituais são conferidos, está reservada para a ordenação formal
praticada hoje. Todavia, certo teólogo iguala o que Paulo descreve aqui
com a ordenação formal de nossas denominações. Então, ele observa que a
ordenação não é um reconhecimento de dons já presentes, mas uma
concessão de dons não possuídos anteriormente. E, adiciona, esse dom é a
autoridade para pregar.
Todos os três pontos são errados ou enganosos.
Primeiro,
há evidência bíblica insuficiente para estabelecer a teoria de
ordenação afirmada pelas denominações hoje. De fato, há evidência
bíblica insuficiente para estabelecer as próprias denominações formais.
Havia ordem na igreja, crentes trabalhando juntos em acordo, e
conferências de presbíteros para discutir questões doutrinárias, mas
tudo isso não se traduz numa instituição elaborada governada por
concílios regionais e nacionais. Se um grupo de crentes decide se unir
dessa maneira para fornecer apoio e prestação de contas mútuas como uma
questão de vantagem e conveniência prática, não me oponho a isso.
Contudo, seria errado eles desprezarem, criticarem ou de alguma forma
pensar menos de cristãos que agem de acordo com os princípios bíblicos,
mas diferem deles em detalhes não definidos ou restringidos por
princípios bíblicos. Os princípios bíblicos para o governo da igreja são
ricos, claros e inflexíveis, mas permitem muita liberdade nos detalhes,
e simplesmente não requerem uma estrutura denominacional, ou muitas das
teorias e práticas assumidas hoje. Se você impõe seus próprios
princípios de governo eclesiástico sobre outros quando a Escritura não
ensina ou os requer, então você está seguindo o exemplo dos fariseus, no
fato de você alegar proteger a ordem prescrita da igreja, quando está
na verdade protegendo tradições inventadas por homens.
Segundo,
é enganoso dizer que a ordenação não é um reconhecimento de dons já
presentes, mas uma concessão de dons não possuídos anteriormente. Essa é
uma inferência muito ampla a partir de um versículo limitado e
específico. De acordo com a Bíblia, Deus concede dons espirituais de
diferentes formas. Algumas vezes eles são dados diretamente, sem nenhuma
agência humana. Outras vezes são dados em resposta à oração. Por
exemplo, Paulo diz que a pessoa que fala em línguas deve orar para que
possa interpretá-las. Então, algumas vezes eles são dados por meio de
agentes humanos, como quando os presbíteros e Paulo impuseram suas mãos
sobre Timóteo. O que chamamos ordenação é um reconhecimento público do
chamado. O chamado já existe, quer a igreja o reconheça ou não. Os dons
espirituais sempre seguem o chamado. Eles apoiam o chamado da pessoa, e o
capacitam a cumpri-lo. Mas os dons nem sempre são concedidos através da
ordenação, nem o reconhecimento do chamado pela igreja é sempre
necessário. E se Deus chama alguém para repreender a igreja ou se opor a
uma denominação? Quem o ordenou então? Ou isso nunca acontece? Qual é a
evidência bíblica que torna nossas denominações e seu reconhecimento
formal algo necessário? Não existe nenhum princípio rígido de ordenação
na Bíblia. Isso é uma questão de ordem eclesiástica. Algumas vezes Deus a
usa, outras não. Deus ainda é Deus. Quer a política da nossa igreja
permita Deus ser Deus ou não, ele ainda pode fazer o que quiser.
Teólogos
frequentemente afirmam doutrinas que restringem as práticas corretas
àquelas já afirmadas por suas denominações. Eles começam a partir da
Bíblia, então adicionam suas tradições a ela, e o resultado são as
políticas denominacionais, que eles afirmam ser a pura doutrina
escriturística e criticam aqueles que discordam. Mas o ensino da Bíblia
deixa espaço para a soberania de Deus, muita variedade, e a liberdade
para adaptar. Os cristãos poderiam aceitar a ordem eclesiástica
prescrita por suas tradições como uma questão de conveniência prática,
mas uma vez que se torna mais que isso – uma vez que se torna uma
doutrina formal que define o certo e o errado – eles deveriam se rebelar
contra ela. Que ninguém te roube da liberdade que Cristo comprou para
você. Ai da denominação cuja rebelião contra o evangelho está na ordem e
política da igreja.
Terceiro,
quanto à autoridade para pregar, isso pelo menos precisa ser
esclarecido. A Bíblia ensina que todos os cristãos são sacerdotes em
Cristo (Apocalipse 1.6). E visto que todos somos sacerdotes, a
implicação irresistível é que todos os cristãos podem pregar e
administrar a ceia e o batismo. A coisa curiosa é que nem todas as
igrejas e denominações que admitem o primeiro (que todos os crentes são
sacerdotes) irão ao mesmo tempo reconhecer o último (que todos podem
pregar e administrar as ordenanças sagradas). Isso acontece porque as
pessoas nessas igrejas e denominações são hipócritas. Eles dizem o que
dizem para distingui-los dos católicos, mas então praticam a mesma coisa
em suas congregações. O Novo Testamento de fato ensina que deve haver
líderes dentro das congregações, e como uma questão de ordem
eclesiástica, eles são geralmente aqueles que pregam e administram a
ceia e o batismo. Isso é para manter a excelência na atividade da igreja
e para impedir o caos e a confusão. Contudo, outros cristãos não estão
impedidos dessas coisas como uma questão de doutrina e princípio.
Deus é
maior que nossas tradições e nossas denominações. Muitíssimas pessoas
dizem que creem nisso, mas negam em suas doutrinas e práticas. Se Deus
quer ordenar a alguém, ele na verdade não precisa de nenhuma aprovação
ou reconhecimento humano. Ele frequentemente arranja o reconhecimento
humano para manter a boa ordem, mas nada na Escritura indica que isso
deva acontecer ou que deva acontecer de determinada forma. Cristo é o
único mediador entre Deus e os homens. Não devemos permitir algo em
nossa política eclesiástica que pareça negar isso.
Se Deus
quer entregar suas palavras ou suas bênçãos por meio de homens, isso é
direito seu. Mas se Deus deseja entregar essas diretamente, não cabe à
igreja proibi-lo. A igreja é uma comunidade de pessoas individualmente
redimidas e chamadas por Deus. Ele arranja pessoas para crerem no
evangelho pelo ministério de agentes humanos, tal como a pregação de um
pastor ou membro de uma igreja particular. Ele faz isso por inúmeras
razões, tais como a ordem estabelecida, a comunidade e os
relacionamentos entre os homens, e para exercitar e recompensar aqueles
que pregam. Mas Deus não precisa de agentes humanos mesmo quando diz
respeito à pregação do evangelho, e não devemos ressentir ou rejeitar
alguém se ele recebe algo da parte de Deus sem nossa mediação.
Se você
teme que isso levaria ao caos, então isso mostra que você adotou
grandemente a mentalidade dos fariseus e católicos. Essa é a mentalidade
que pensa que precisamos usar tradições humanas para reforçar os
preceitos divinos, e isso removendo-se a liberdade que a revelação
divina permite, incluindo a liberdade que Deus reserva para si. Se
alguém se converte à fé cristã ou possui um ministério à parte do nosso
controle, sua fé e ministério ainda estão sujeitos à palavra de Deus, e
podem ser testadas pela palavra de Deus. E essa é a única base legítima
para testar sua conversão ou chamado ao ministério. Ele não tem nenhuma
obrigação de responder ou se submeter a tradições humanas que não
prometeu cumprir. E se essas tradições violam a palavra de Deus, ele tem
obrigação de romper com elas.
Pode ser
verdade que a igreja está em tempos difíceis. Muitas pessoas estão se
afastando das congregações locais, e as falsas doutrinas abundam.
Contudo, a resposta não é uma teologia de controle por meio de tradições
feitas por homens, mas uma teologia de liberdade em Cristo. Que Cristo
atraia o povo que ele escolheu e chamou! Quanto aos cristãos, eles são
responsáveis perante Cristo, não as tradições humanas. Portanto,
desafie-as quando apropriado e necessário. É frequentemente aceitável se
submeter a costumes humanos em prol do amor e da ordem, mas não porque
seja requerido de você como uma questão de princípio.
Marcos 9
nos diz que um homem estava expulsando demônios em nome de Jesus, mas
os discípulos disseram-lhe para parar de fazê-lo por não ser um deles.
Jesus respondeu: “Não o impeçam. Ninguém que faça um milagre em meu
nome, pode falar mal de mim logo em seguida, pois quem não é contra nós
está a nosso favor”. Quem ordenou a essa pessoa? Por mãos de quem Deus
conferiu dons espirituais a esse homem? Nem mesmo Jesus na Terra fez
isso. Mas Deus no céu o fez, e aparentemente sem qualquer agência ou
aprovação humana. Como observa um estudioso do Novo Testamento, o
próprio Jesus não teve sanção humana oficial para o seu ministério. As
tradições humanas são frequentemente tão perigosas quanto as ameaças à
ordem que elas procuram eliminar. E eles frequentemente se afastam da
ortodoxia que alegam proteger, ao ponto que até mesmo ordenariam o
assassinato do próprio Filho de Deus. Todos os cristãos devem ser livres
para servir a Deus, sob as diretrizes estritas, mas algumas vezes
amplas, da Palavra de Deus, e não das restrições de tradições humanas.
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Sobre o autor: Vincent Cheung é autor de trinta livros e centenas de
palestras sobre uma gama de assuntos em teologia, filosofia, apologética
e espiritualidade. Através dos seus livros e palestras, ele está
treinando cristãos para entender, proclamar, defender e praticar a
cosmovisão bíblica como um sistema de pensamento abrangente e coerente,
revelado por Deus na Escritura. Vincent Cheung reside em Boston com sua
esposa Denise.
Fonte: Reflections on Second Timothy
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto, maio/2010
Fonte: Monergismo
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