O papa revolucionário
>> sábado, 16 de fevereiro de 2013
Eugenio Scalfari é um jornalista italiano, fundador e ex-editor-chefe (um publisher)
do prestigioso jornal La Repubblica, do qual hoje é articulista, lúcido
e arguto que permanece aos 88 anos de idade. Garantia de leitura sempre
agradável e provocante.
Scalfari faz
sempre uma análise bastante interessante de fatos da Itália e do mundo.
Merece ser lido e divulgado seu recente artigo sobre a renúncia de
Bento XVI, traduzido e publicado no Brasil pelo IHU:
O pastor e o poder.
Artigo de Eugenio Scalfari
As
consequências da secularização e laicização promovidas por Bento XVI em
sua renúncia referem-se à distribuição dos poderes dentro da Igreja:
paralelamente à diminuição do papel do papa, aumentará a dos concílios e
dos sínodos, isto é, das assembleias dos bispos.
A opinião
é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La
Repubblica, 12-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Um
ato revolucionário a renúncia do papa. E certamente o é. Isso nunca
havia acontecido, salvo com Celestino V, que foi obrigado pelos
franceses que depois continuaram exercendo o seu poder sobre Bonifácio
VIII até o tapa de Anagni. E salvo um par de papas e de antipapas
eleitos por concílios e conclaves medievais contrapostos.
O
cânone prevê a renúncia, e até mesmo o Papa Ratzinger admitiu a sua
possibilidade em um livro-entrevista seu de dois anos atrás; mas uma
coisa é dizer, outra é fazer.
Portanto,
um fato revolucionário. Mas qual é a natureza e quais serão as
consequências dessa revolução? A natureza é evidente: a Igreja se
laiciza. O papa até agora foi considerado dentro da Igreja e da
comunidade dos fiéis como Vigário de Cristo na terra e, de fato, quando
fala "ex cathedra" sobre questões de fé a sua palavra é infalível, como
decretou o Concílio Vaticano I de 1870.
Esse
ponto ainda é o obstáculo não superado que impediu a unificação entre
católicos e anglicanos, e entre católicos e ortodoxos da Igreja
Oriental. Os outros obstáculos estavam em grande parte superados, até os
da supremacia do bispo de Roma sobre todos os outros: o primaz da
Rússia estava pronto para reconhecer ao bispo de Roma a primazia de
"primus inter pares", mas não a de Vigário da Divindade na terra.
A
renúncia de Bento XVI anula esse obstáculo; o cânone, de fato, põe uma
única condição: que o papa tome a sua decisão em plena liberdade, isto
é, que não pese sobre ela alguma sombra de pressão e de chantagem. A
vontade de Cristo não é nem citada, nem Ratzinger faz menção a ela nas
breves palavras com as quais comunicou a sua decisão ao Consistório
convocado na manhã dessa segunda-feira para se ocupar de objetos
totalmente diferentes.
Portanto,
diminui a relação direta entre o Chefe da Igreja e o Filho de Deus, e a
autoridade do bispo de Roma sobre toda a cristandade não deriva de
outra coisa que da eleição em conclave por parte dos cardeais, uma
cerimônia totalmente laica, salvo o lugar em que ocorre (a Capela
Sistina, que é uma igreja consagrada) e o perfume de incenso e o som dos
sinos que acompanham o Veni Creator Spiritus.
As
consequências dessa secularização e laicização referem-se à
distribuição dos poderes dentro da Igreja: paralelamente à diminuição do
papel do papa, aumentará a dos concílios e dos sínodos, isto é, das
assembleias dos bispos.
Esse
foi o pedido implícito mas evidente do Vaticano II, mas foi por mais de
30 anos a tese explicitamente defendida pelo cardeal Martini. A Igreja
como instituição – disse e escreveu Martini em livros, pregações e
diálogos – se fundamenta sobre duas autoridades, a do papa e a dos
concílios e dos sínodos. O papa participa de uns e de outros com funções
de coordenação e de direção, mas as decisões são tomadas pelos bispos,
que são os depositários do legado dos Apóstolos de Jesus.
Não
se trata de um fenômeno de pouco relevo. Basta considerar que os bispos
estão muito mais interessados na pastoralidade do que no poder da
hierarquia curial. A hierarquia curial deveria, em teoria, fornecer à
pastoralidade os instrumentos e os meios materiais para evangelizar as
almas e difundir o credo. A Igreja militante é confiada aos pastores de
almas, bispos, párocos, sacerdotes, ordens religiosas. Mas essa é
historicamente somente uma parte da realidade.
A
Igreja-instituição deveria representar a custódia da Igreja militante e
pastoral; ao invés, ocorreu o contrário. Por séculos e milênios, a
instituição sufocou a pastoralidade e promoveu guerras, inquisições,
corrupção, simonia. Não se tratou de episódios, mas sim de uma
continuidade histórica, cujo pivô era o poder temporal. Lembram-se das
Cruzadas? Lembram-se da Guerra das Investiduras que teve Canossa como
etapa essencial? Lembram-se do exílio de Avignon? As alianças, o
nepotismo, as dinastias fundadas pelos papas: os Colonna, os Orsini, os
Caetani, os Farnese, os Piccolomini, os Borghese, os Della Rovere. E os
Borgia?
A
pastoralidade, no entanto, continuou e espalhou a sua semente larga e
preciosamente, e isso foi um verdadeiro milagre. Mas o rosto abrangente
da Igreja saiu em grande parte manchado. As suas capacidades de se
confrontar com a modernidade foram fortemente reduzidas.
Essa
situação poderia ter melhorado com o fim do poder temporal propriamente
dito, mas não foi assim. A Igreja-instituição manteve a supremacia
sobre a Igreja militante e pastoral, recuperando aquele poder através da
política e do fascínio do espetáculo.
O
pontificado do Papa Pacelli foi o cume da temporalidade política, não
por acaso precedido pela concordata Pio XI-Mussolini; o espetáculo, ao
invés, teve a sua estrela mais brilhante na figura do Papa Wojtyla,
enfrentando sofrimentos terríveis, até mesmo a sua agonia e a sua morte .
Mas
esses milagres (porque foram milagres de inteligência e também de fé e
de dor) não resolveram os problemas da Igreja. Evadiram-nos e os
deixaram aos sucessores.
Esses
problemas, com o passar do tempo, se agravaram. Referem-se à
recuperação do Sagrado, à dedicação dos fiéis à caridade, à Igreja
pobre, à Igreja missionária, à fé na vida, ao contraste entre a
liberdade dos modernos e a dogmática dos tradicionalistas. E as centenas
de milhares de problemas postos pela bioética, pela psicologia do
profundo, pelas desigualdades do mundo. As diferenças não curadas e
talvez incuráveis entre a Igreja de Paulo, a de Agostinho, a de Bento, a
de Francisco.
A
nós, não crentes, agradaria muito que o futuro papa e bispo de Roma, em
meio a tantas proclamações de santos que não fazem mais milagres
(admitindo-se que os do passado os fizeram), propusesse a de Pascal.
Seria o verdadeiro sinal de que algo está mudando nos palácios
apostólicos. Se tivesse vivido por mais tempo, talvez o Papa João a
teria feito.
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