Revisitando Eclesiastes - capítulo 6
>> segunda-feira, 11 de março de 2013
Eclesiastes 6 é o segundo menor capítulo do livro, com apenas 12 versículos (o 11 tem 10), e funciona como um complemento do que o Pregador vinha anunciando no capítulo anterior.
O foco inicial está nas bênçãos patriarcais, que marcaram a origem do mundo: uma vida longa cheia de filhos, como os patriarcas bíblicos tiveram.
No fundo, até hoje, de alguma forma, a maioria das pessoas tem esse desejo de viver bastante e poder ver a casa recheada de filhos, netos e bisnetos. Aqui há um contraste interessante com o Salmo 92:
12 Os justos florescerão como a palmeira, crescerão como o cedro no Líbano.13 Estão plantados na casa do Senhor, florescerão nos átrios do nosso Deus.14 Na velhice ainda darão frutos, serão viçosos e florescentes,15 para proclamarem que o Senhor é reto. Ele é a minha rocha, e nele não há injustiça.
Aparentemente, o Pregador nega as bênçãos da longevidade e da fertilidade, mas o salmista valoriza uma vida "plantada", construída, edificada na presença de Deus.
O discurso do capítulo 6, entretanto, menospreza aqueles que buscam essas bênçãos apenas por buscá-las, como se houvesse na longevidade e na fertilidade algum bem intrínseco que pudesse ser vivido à parte do Senhor.
De fato, muitos de nós queremos prolongar a nossa vida mediante todo tipo de atividades e cuidados com a saúde, quando não sabemos exatamente que fim teremos.
O pregador considera um mal (v. 1) a pessoa que tem de tudo na vida, mas não pode comer, por exemplo (v. 2), talvez em função de alguma doença grave ou - sobretudo - em decorrência da excessiva preocupação em ganhar o pão de cada dia ou aumentar os seus celeiros (as suas riquezas).
De nada adianta, portanto, alguém gerar 100 filhos, se a sua alma permanece insaciável e incompleta, e nem sepultura ele tem (v. 3). Aqui, o Pregador faz uma comparação extremamente negativa: "um aborto é mais feliz que ele".
Este versículo (6:3) tem gerado muita polêmica no Brasil ultimamente porque foi com base nele que Edir Macedo justificou o seu apoio ao aborto, numa entrevista à Folha de S. Paulo (acesso aqui para quem tem UOL), dizendo o seguinte:
O que a Bíblia ensina é que se alguém gerar cem filhos e viver muitos anos, até avançada idade, e se a sua alma não se fartar do bem, e além disso não tiver sepultura, digo que um aborto é mais feliz do que ele (Eclesiastes 6.3). Não acredito que algo, ainda informe, seja uma vida.
Esta é uma
posição que não condiz com o texto e o contexto de Eclesiastes 6.
Primeiramente, a palavra traduzida por "aborto" na Almeida (tanto a
Atualizada como a Corrigida) é נפל - nêphel – literalmente, "algo que cai, caído", como se fosse um bebê natimorto, morto antes de nascer.
Ainda que, mesmo em hebraico, seja uma palavra relativamente vaga, nas duas outras vezes em que ela aparece no Velho Testamento (Jó 3:16 e Salmo 58:8) fica mais claro que não se está falando de um aborto induzido, sobretudo se nos lembrarmos da beleza do Salmo 139:
O grande problema da tradução para o português é que a palavra "aborto" tanto serve para o natimorto (aborto natural) como para o aborto provocado, mas dentro do contexto de Eclesiastes 6 a retórica do Pregador utiliza a imagem de um aborto natural apenas como ferramenta argumentativa.
A Bíblia de Jerusalém e a do Peregrino seguem a mesma linha da Almeida. A Bíblia na Linguagem de Hoje e a NVI são mais felizes nesta tradução: "que adianta um homem viver muitos anos e ter cem filhos se não aproveitar as coisas boas da vida e não tiver um enterro decente? Eu digo que uma criança que nasce morta tem mais sorte que ele" (NTLH).
A NVI inverte um pouco a tradução, aplicando o enterro à criança (o que é uma interpretação possível, mas solitária): "se não desfrutar as coisas boas da vida, digo que uma criança que nasce morta e nem ao menos recebe um enterro digno tem melhor sorte que ele".
A Tradução Ecumênica (TEB) escolhe um caminho que me parece mais dúbio: "porém, por muitos que sejam os dias de seus anos, não se sacia de felicidade e nem sequer ganha sepultura. Digo: o abortado vale mais do que ele".
Os versículos seguintes continuam falando do feto abortado, "pois veio em vão e para as trevas se vai e pelas trevas seu nome será coberto. Nem viu, nem conheceu o sol, mas descansa melhor do que o outro" (vv. 4-5 - TEB).
Resulta, portanto, muito complicado construir uma "teologia do aborto legalizado" com base nesses versículos, já que o Pregador, dentro de sua argumentação até certo ponto sarcástica, está fazendo um contraponto grosseiro e extremamente negativo ao desejo humano de longevidade.
Diga-se de passagem que este sentimento continua profundamente relacionado à eternidade que Deus colocou no coração do homem (3:11), que desde 2:16 Qohélet já vinha preparando o terreno, ao dizer que "nem o sábio, nem o tolo serão lembrados para sempre".
No v. 6, ele ainda se vale de mais uma ironia ao lembrar disso, ao dizer que de nada adiantaria viver 2.000 anos, se não se desfrutar a vida, o que também remete ao tempo dos patriarcas, que viviam 800, 900 anos, (Matusalém bateu o recorde, com 969).
Este desejo de longevidade, portanto, é a ponte que o homem tenta construir para alcançar a eternidade, quando esta é, na verdade, a ponte que Deus constrói para alcançar o homem.
É o Senhor que a concede, assim como confere riquezas, bens, honra e, principalmente, o poder (e o supremo prazer) de desfrutar a vida (v. 2), como Ele próprio desfrutou em carne na Pessoa de Jesus, O Cristo.
A rigor, o Pregador segue o antigo ensinamento de Moisés que, no Salmo 90, já dizia que "os dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta; neste caso, o melhor deles é canseira e enfado, porque tudo passa rapidamente, e nós voamos" (v. 10).
Logo, por que o ser humano tem essa fixação com a longevidade? Por que não aproveitar o aqui e agora em vez de se matar de trabalho e preocupação para atingir uma idade provecta onde os prazeres já lhe serão proibitivos (ou inadequados)?
Este trecho do capítulo 6 deve ser lido, portanto, em consonância com o capítulo anterior, em que o Pregador já alertava que "grava mal vi debaixo do sol?: as riquezas que seus donos guardam para o próprio dano" (Eclesiastes 5:13).
Mais adiante Qohélet dá seu diagnóstico final: "Nas trevas, comeu em todos os seus dias, com muito enfado, com enfermidades e indignação" (Eclesiastes 5:17), esquecendo-se do dom de Deus, que é "gozar do seu trabalho" (Eclesiastes 5:19).
Os desejos e as fantasias do homem, a que o Pregador já havia se referido brevemente no v. 2, finalizam o capítulo 6.
É preciso trabalhar para comer, mas o apetite nunca é satisfeito completamente (v. 7). O que comemos no almoço não nos sustenta no jantar, e muito menos no dia seguinte. O estômago é um eterno insatisfeito.
A cobiça é ociosa (v. 9), pois também nunca se satisfaz, quanto mais tem mais quer. Logo, o sábio não tem vantagem sobre o tolo (v. 8), pois tanto um como outro precisam comer; a fome os iguala, os nivela, digamos, por baixo.
A vida é curta, passa como uma sombra (v. 12), repetindo as lições dos Salmos 39:6 ("passa o homem como uma sombra; em vão se inquieta") e 102:11 ("como a sombra que declina, assim os meus dias, e eu me vou secando como a relva"), tema que será reverberado em Tiago 4:14 ("que é a vossa vida? Sois , apenas, como neblina que aparece por instante e logo se dissipa").
Se a rotina do mundo é a mesma para todos; por que o homem vai se indispor com alguém mais forte (v. 10)? Este "alguém mais forte" pode ser entendido como o próprio Deus, o provedor, o doador de todos os bens.
Podemos ter a imagem também de Jacó lutando com Deus em Peniel ("a face de Deus" - Gênesis 32:30). Depois do encontro face a face com Deus, Jacó continuou a viver na Terra, enfrentando a rotina do mundo: "Nasceu-lhe o sol, quando ele atravessava Peniel; e manquejava de uma coxa" (Gn 32:31).
"Quem pode declarar ao homem o que será depois dele debaixo do sol?" (Ecl 6:12). O sol nasce para todos, é verdade, "mas para vós, os que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça" (Malaquias 4:2).
Ainda que, mesmo em hebraico, seja uma palavra relativamente vaga, nas duas outras vezes em que ela aparece no Velho Testamento (Jó 3:16 e Salmo 58:8) fica mais claro que não se está falando de um aborto induzido, sobretudo se nos lembrarmos da beleza do Salmo 139:
15 os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra.16 Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda.
O grande problema da tradução para o português é que a palavra "aborto" tanto serve para o natimorto (aborto natural) como para o aborto provocado, mas dentro do contexto de Eclesiastes 6 a retórica do Pregador utiliza a imagem de um aborto natural apenas como ferramenta argumentativa.
A Bíblia de Jerusalém e a do Peregrino seguem a mesma linha da Almeida. A Bíblia na Linguagem de Hoje e a NVI são mais felizes nesta tradução: "que adianta um homem viver muitos anos e ter cem filhos se não aproveitar as coisas boas da vida e não tiver um enterro decente? Eu digo que uma criança que nasce morta tem mais sorte que ele" (NTLH).
A NVI inverte um pouco a tradução, aplicando o enterro à criança (o que é uma interpretação possível, mas solitária): "se não desfrutar as coisas boas da vida, digo que uma criança que nasce morta e nem ao menos recebe um enterro digno tem melhor sorte que ele".
A Tradução Ecumênica (TEB) escolhe um caminho que me parece mais dúbio: "porém, por muitos que sejam os dias de seus anos, não se sacia de felicidade e nem sequer ganha sepultura. Digo: o abortado vale mais do que ele".
Os versículos seguintes continuam falando do feto abortado, "pois veio em vão e para as trevas se vai e pelas trevas seu nome será coberto. Nem viu, nem conheceu o sol, mas descansa melhor do que o outro" (vv. 4-5 - TEB).
Resulta, portanto, muito complicado construir uma "teologia do aborto legalizado" com base nesses versículos, já que o Pregador, dentro de sua argumentação até certo ponto sarcástica, está fazendo um contraponto grosseiro e extremamente negativo ao desejo humano de longevidade.
Diga-se de passagem que este sentimento continua profundamente relacionado à eternidade que Deus colocou no coração do homem (3:11), que desde 2:16 Qohélet já vinha preparando o terreno, ao dizer que "nem o sábio, nem o tolo serão lembrados para sempre".
No v. 6, ele ainda se vale de mais uma ironia ao lembrar disso, ao dizer que de nada adiantaria viver 2.000 anos, se não se desfrutar a vida, o que também remete ao tempo dos patriarcas, que viviam 800, 900 anos, (Matusalém bateu o recorde, com 969).
Este desejo de longevidade, portanto, é a ponte que o homem tenta construir para alcançar a eternidade, quando esta é, na verdade, a ponte que Deus constrói para alcançar o homem.
É o Senhor que a concede, assim como confere riquezas, bens, honra e, principalmente, o poder (e o supremo prazer) de desfrutar a vida (v. 2), como Ele próprio desfrutou em carne na Pessoa de Jesus, O Cristo.
A rigor, o Pregador segue o antigo ensinamento de Moisés que, no Salmo 90, já dizia que "os dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta; neste caso, o melhor deles é canseira e enfado, porque tudo passa rapidamente, e nós voamos" (v. 10).
Logo, por que o ser humano tem essa fixação com a longevidade? Por que não aproveitar o aqui e agora em vez de se matar de trabalho e preocupação para atingir uma idade provecta onde os prazeres já lhe serão proibitivos (ou inadequados)?
Este trecho do capítulo 6 deve ser lido, portanto, em consonância com o capítulo anterior, em que o Pregador já alertava que "grava mal vi debaixo do sol?: as riquezas que seus donos guardam para o próprio dano" (Eclesiastes 5:13).
Mais adiante Qohélet dá seu diagnóstico final: "Nas trevas, comeu em todos os seus dias, com muito enfado, com enfermidades e indignação" (Eclesiastes 5:17), esquecendo-se do dom de Deus, que é "gozar do seu trabalho" (Eclesiastes 5:19).
Os desejos e as fantasias do homem, a que o Pregador já havia se referido brevemente no v. 2, finalizam o capítulo 6.
É preciso trabalhar para comer, mas o apetite nunca é satisfeito completamente (v. 7). O que comemos no almoço não nos sustenta no jantar, e muito menos no dia seguinte. O estômago é um eterno insatisfeito.
A cobiça é ociosa (v. 9), pois também nunca se satisfaz, quanto mais tem mais quer. Logo, o sábio não tem vantagem sobre o tolo (v. 8), pois tanto um como outro precisam comer; a fome os iguala, os nivela, digamos, por baixo.
A vida é curta, passa como uma sombra (v. 12), repetindo as lições dos Salmos 39:6 ("passa o homem como uma sombra; em vão se inquieta") e 102:11 ("como a sombra que declina, assim os meus dias, e eu me vou secando como a relva"), tema que será reverberado em Tiago 4:14 ("que é a vossa vida? Sois , apenas, como neblina que aparece por instante e logo se dissipa").
Se a rotina do mundo é a mesma para todos; por que o homem vai se indispor com alguém mais forte (v. 10)? Este "alguém mais forte" pode ser entendido como o próprio Deus, o provedor, o doador de todos os bens.
Podemos ter a imagem também de Jacó lutando com Deus em Peniel ("a face de Deus" - Gênesis 32:30). Depois do encontro face a face com Deus, Jacó continuou a viver na Terra, enfrentando a rotina do mundo: "Nasceu-lhe o sol, quando ele atravessava Peniel; e manquejava de uma coxa" (Gn 32:31).
"Quem pode declarar ao homem o que será depois dele debaixo do sol?" (Ecl 6:12). O sol nasce para todos, é verdade, "mas para vós, os que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça" (Malaquias 4:2).
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