A História do Inferno: de 1000 a 1400 d.C.
>> quinta-feira, 17 de novembro de 2011
O que os cristãos creram a respeito do inferno ao longo da história?
Após uma introdução das três principais visões sobre o inferno, apresentamos aqui grandes nomes da história e o que defendiam sobre o assunto. (acesse a introdução para ver o índice)
Anselmo da Cantuária (1033–1108)
No desenvolvimento da doutrina cristã do inferno, o teólogo Anselmo da Cantuária, dos primórdios do escolasticismo, é amplamente conhecido por defender o caráter eterno da punição no inferno ao se valer de uma analogia do direito feudal. No feudalismo, a severidade da punição por algum crime praticado era determinada mais pela relativa dignidade da vítima que pela natureza do crime. Roubar de um rei resultava em punição muito mais rigorosa que roubar de um escravo, por exemplo. Com base nisso, Anselmo concluiu que o crime contra a honra infinita de Deus merece punição também infinita. No entanto, como os seres humanos são finitos, podemos pagar a pena por nossos pecados somente se sofrermos por tempo infinito.
Nisso vemos o escolástico Anselmo tentando esclarecer uma doutrina em que os cristãos já criam, aplicando-lhe a razão (seu lema era “a fé que busca entendimento”). Mas, no encerramento de sua Meditação para despertar temor, ele mostra seu lado pastoral (era arcebispo e ex-abade). Nessa obra, após retratar os tormentos do inferno, trata da pergunta: “Quem poderia libertar alguém desse destino?”. Sua resposta: “Só ele mesmo; ele mesmo, Jesus, o qual é meu Juiz e em cujas mãos estremeço. Ânimo, pecador, não te desesperes! Deposita a esperança naquele a quem temes, corre para aquele de quem fugiste […]. Jesus, Jesus, por amor de teu nome, lida comigo de acordo com teu nome [...]. Tem misericórdia, Jesus, enquanto durar o tempo da misericórdia, para que no tempo do juízo não me venhas a condenar”.
Os cátaros (séculos XI e XII)
Os cátaros, seita cristã surgida na França e em outras partes da Europa, eram dualistas. Criam que a existência terrena, incluindo-se o corpo humano, era má em sua natureza, criada não pelo Deus cristão, mas por um deus mau. O Deus a quem adoravam era um ser de espírito puro que jamais se teria rebaixado tanto a ponto de assumir a carne perversa. Assim, negavam que Jesus pudesse se encarnar e continuar sendo o Filho de Deus. Negavam também o entendimento cristão de que a crucificação e a cruz eram instrumentos salvíficos. Para a Igreja Católica, os cátaros eram hereges perigosos, e assim ela os perseguiu impiedosamente, até mesmo desferindo contra eles uma sangrenta cruzada (a “Cruzada Albigense”).
Não é de surpreender que os cátaros também rejeitassem a tradicional doutrina cristã do inferno. Para eles, este mundo era o único inferno (e o era de forma mais que suficiente, dada a perseguição que sofreram). Nada havia para temer após a morte, a não ser, talvez, uma espécie de reencarnação ensinada por alguns membros da seita. O objetivo deles era escapar do ciclo de reencarnação, conquistar o direito de seguir para o céu e evitar outro período de aprisionamento aqui no inferno sobre a terra.
Tomás de Aquino (1224-1274)
O grande teólogo escolástico Tomás de Aquino é conhecido por vários ensinos relacionados ao inferno. Em primeiro lugar, defendia que a punição eterna consciente era apropriada a alguém que aqui na terra rejeitasse a Deus a favor de bens temporais, uma vez que tal pessoa de fato mostrava preferir esses bens passageiros até mesmo à vida eterna com Deus. Deus é justo, arrazoava ele, em punir essa pessoa da mesma maneira que a teria punido se tivesse pecado eternamente, ou seja, com a punição eterna ― afinal de contas, como diz a Bíblia, essa pessoa, ao ganhar “o mundo inteiro”, perde “a vida”.
Tomás igualmente tratou da acusação, comum também entre críticos de nosso tempo, de que Deus de algum modo se teria limitado em onipotência caso tivesse de mandar qualquer pessoa para o inferno (assim frustrando seu plano divino de criar a humanidade com o propósito de partilhar com ele das bênçãos divinas). Ele reconheceu que a bondade de Deus exige que todos sejam salvos (1Tm 2.4). Mas também defendeu que a manifestação da ira divina (ou seu ódio pelo pecado) requer que ao menos alguns pequem para quem sejam justamente punidos. Desse modo, a vontade de Deus de salvar a todos é atenuada pelas demandas de sua justiça, gerando assim um meio-termo: ele salvará os eleitos, manifestando dessa forma sua misericórdia, e condenará os réprobos, manifestando assim sua justiça.
Capaz de ofender gravemente as susceptibilidades modernas é a defesa que Tomás de Aquino faz da tradicional doutrina segundo a qual, para que os santos no céu “desfrutassem mais plenamente de sua bem-aventurança e mais copiosamente rendessem graças”, haveriam de receber o direito de assistir à punição dos condenados. Como no caso de outras doutrinas tradicionais, essa também se baseava nas Escrituras: Apocalipse 14.9-11 mostra os perversos sendo atormentados com fogo e enxofre na presença dos anjos e do Cordeiro. Na história do rico e de Lázaro, em Lucas 16, o rico pôde ver Lázaro “de longe”, e assim parece razoável que Lázaro pudesse divisar o rico. Além disso, Isaías 66.22-24 promete que os adoradores do Senhor “sairão e verão os cadáveres dos que transgrediram contra mim, porque o seu verme nunca morrerá, nem o seu fogo se apagará; e eles serão um horror para toda a humanidade”.
Tomás de Aquino também contribuiu com a ideia do “limbo”, no qual recém-nascidos não-batizados evitariam as mais atrozes penas do inferno. O limbo, além de tudo, fazia parte do inferno, pelo fato de que os recém-nascidos ainda eram manchados pelo pecado original, mas tinham a permissão de sofrer somente a ausência de Deus e não o tormento físico vividamente retratado em tantos escritos e obras de arte da Idade Média.
Dante Alighieri (1265-1321)
Nenhum tratamento medieval do inferno nos ocorre hoje com mais facilidade que o Inferno, de Dante ― o primeiro dos três volumes de sua Divina comédia. De acordo com o poema, certo dia, em 1300, Dante se viu vagando em uma floresta sombria. Depois de encontrar com três feras famintas e vorazes, foi alcançado pelo poeta latino Virgílio, o qual prometeu conduzi-lo pelo inferno e pelo purgatório. Na noite de Sexta-Feita Santa, dia 8 de abril, eles adentraram os portões do inferno (no qual se acha a inscrição: “Perdei as esperanças, vós todos que por aqui entrais”) e começaram a viajar percorrendo seus círculos sucessivos. Na visão imaginativa de Dante, o inferno é um cone emborcado no interior da terra, com seu vértice localizado no centro do globo. O círculo superior é o dos Campos Elíseos, onde habitam os nobres pagãos. A cada nível mais profundo, os viajantes contemplam as punições de pecados cada vez mais hediondos, até chegarem a um lago congelado em que o próprio Lúcifer pune os piores de todos os pecadores: os traidores.
Em harmonia com o propósito didático desses contos medievais, a viagem de Dante ao outro mundo o reconduz, pouco a pouco, das trevas e do pecado de volta para a presença jubilante e fulgurosa de Deus. Ao fim do terceiro livro do poema, Dante vislumbra os santos bem-aventurados nos céus, a desfrutar de Deus.
O Inferno é propositalmente repulsivo na forma em que retrata o inferno cristão. Mesmo Geoffrey Nuttal, um leitor solidário, afirmou: “Se o Inferno fosse todo o poema, dificilmente se podia evitar concluir que Dante era dono de uma mente doentia, obcecada por perversões sádicas ou outras aberações sexuais”. Mas os habitantes do inferno de Dante em certo nível desejam estar onde estão. O amor deles se tornou tão desorientado, que acabaram por chegar ao inferno da própria vontade deles.
Dante concordava com a antiga opinião de Arisóteles segundo a qual a alma “dá forma” ao corpo: as expressões faciais, o gestual e a linguagem corporal das pessoas dão testemunho daquilo que se acha no coração. Assim, o pecado inveterado nos transtorna a aparência (como nossos pais sempre nos disseram: “Não faça essa careta, que ela não sairá mais”). Assim, Dante fez que seus pecadores do Inferno reencenassem para sempre no próprio corpo os exatos pecados que tinham o hábito de praticar na terra. O leitor familiarizado com As crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis (amante de Dante), há de lembrar-se de Eustáquio, que se torna um dragão em Nárnia porque costumava ter pensamos avarentos, dragontinos. Era essa exatamente a mensagem que Dante queria passar.
É claro que, assim como na Meditação para despertar temor, de Anselmo, e na tradição medieval de viagens ao inferno, Dante mostrou o inferno a seus leitores justamente com o objetivo de que se voltassem para o Deus de terno amor que não deseja que ninguém pereça.
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